domingo, 28 de fevereiro de 2016

Um dia, uma vida

TERESA TEIXEIRA·TERÇA-FEIRA, 1 DE MARÇO DE 2016

Uma revoada de pombas agitou a tarde parda de inverno e acorreu à atracção das migalhas. O velho sacudiu o saco, deixou as pombas  à avidez quase mecânica dos instintos, e veio até mim, que o observava, no impasse entre a curiosidade e a intermitência do semáforo, no limiar do jardim público.

A luz verde não esperou por mim, porque já o homem me dirigia um sorriso de bonomia. E urgência - de partilhar comigo migalhas da sua vida:

-sabe, menina, elas também precisam de comer, coitadinhas. o senhor padre não gosta que se deite pão às pombas, mas eu sei o que é passar fome. ah, se sei! o que me baleu foi a ‘toria’, ai se baleu! por quatro tostões, menina, benditos quatro tostões! eu tinha uns oito anitos, andaba a pedir pão pelas ruas do porto. foi numa tasca, lá da ilha, o tendeiro distraíu-se, e eu, pimba!, agarrei nos quatro tostões e fugi... era uma criença. bendita casa, a da ‘toria’. comíamos lá bacalhau com batatas, peixe... era um hotel de cinco estrelas, para mim. bibíamos, eu, mais quatro irmão, numa cabe da ilha da (...). eu chegaba a ‘casa´e repartia o pão que me dabam pelos meus irmãozitos, todos mais “nobinhos”. era uma festa. a mim dabam-me, às bezes um caldinho quentinho – já lebaba a barriga cheia, e os bolsos a abarrotar de migalhinhas de pão para os meus irmãos. eu tinha uns oito anitos, não mais... bendita a mão que me apanhou e me meteu na ‘toria’. a minha mãe também pedia pelas ruas, mas gastaba tudo em binho. o meu pai, o que ganhaba, num daba pra nada. bibíamos todos numa cabe, assim, desta altura, quase nem nos podíamos erguer de pé. bendita ‘toria’! aquilo foi o céu. depois, menina, fui pra tropa. quando bim, fui acartar pedra e abrir buracos, para as ruas. ganhaba binte e cinco tostões. depos foi para os camiões, pra matosinhos, a ganhar trezentos mil réis por mês. que fartura! era bom, muito bom, menina. mas passei muito. fiz-me homem, graças a deus, mas devo tudo àquela santa casa, ali na quinta das águas férreas. bons tempos que lá passei! parece que só as pombas ainda se lembram, ainda são as mesmas desses tempos – a fome delas é a mesma que eu conheci, é por uma migalhinha de pão que elas lutam.  e só elas ainda sabem que o céu é um lugar onde não se pode ficar parado. mais tarde ou mais cedo, há que boltar ao chão, ficar á mercê das migalhas dos outros... e esgrabatar a terra. mais que não seja com os nossos ossos...

Cinco sinais vermelhos depois, um sinal verde chamou-me ao tempo de ir andando. Um homem, decentemente vestido, com um saco plástico vazio nas mãos de raízes salientes, e os olhos cheios de palavras por dizer, titubeava desculpas, à minha despedida desajeitada.

-desculpe, menina, a gente tem tanta bida cá dentro a morrer, que às bezes apetece tentar salbar-lhe as misérias, com tagarelices. desculpe lá, se a atrasei. sou um belho chato. tenha uma boua tarde, menina. obrigada pela paciência. sou um belho. e chato. só as pombas me entendem, e sabem da fome que passei.

E sorriu. Um sorriso que entristeceu mais ainda a tarde fria, e que me deixou por dentro a vontade de reescrever coisas que ninguém sabe. Ou que sabe, mas que esquece, à intermitência do sinais. Verdes.

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